Olivar, vol. 17, nº 26, e015, diciembre 2016. ISSN 1852-4478
Universidad Nacional de La Plata.
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación.
Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria

 

 


ARTICULO/ARTICLE

 


O homo viator no espaço da natureza: uma análise do Prólogo dos Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo

 

 

 

Viviane Cunha

Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte
Brasil



Cita sugerida: Cunha, V. (2016). O homo viator no espaço da natureza: uma análise do Prólogo dos Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo. En S. Disalvo (ed.), Natura litterata. La naturaleza en la poesía hispánica medieval y su contexto latino y románico. Olivar, 17 (26), e015. Recuperado de http://www.olivar.fahce.unlp.edu.ar/article/view/OLIe015

 

 

Resumen
Este breve estudio indaga en el Prólogo de los Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo en vinculación con el topos del hortus deliciarum. Tal espacio es el de la Naturaleza virgen, símbolo de María, teniendo en cuenta el desarrollo del culto mariano y observando el “crecimiento” de la figura de la Madre de Dios, desde la Antigüedad hasta los siglos XII y XIII.

Palabras clave: Milagros de Nuestra Señora; Hortus deliciarum; Homo viator; Naturaleza; Culto mariano.

 

The Homo Viator in the Natural Space: A Study on the Prologue of Gonzalo de Berceo’s Milagros de Nuestra Señora

 

Abstract
This brief study inquires into the Prologue of Gonzalo de Berceo’s Milagros de Nuestra Señora, in connection it with the of the hortus deliciarum topos. Its space is that of the virgin Nature, a symbol of Mary, taking into account the development of Marian worship and the “growth” of the image of the Mother of God, from Antiquity to the 12th and 13th centuries.

Keywords: Milagros de Nuestra Señora; Hortus deliciarum; Homo viator; Nature; Marian cult.

 

A natureza na Idade Média é inspirada pela mitologia e pelos pensamentos da antiguidade, assim como pela Gênese bíblica e pelo dogma cristão. A natureza obrada pelo Criador é ordenada pelo caos que lhe impõe a sua lei. Tal representação não alimenta apenas as especulações abstratas, mas também a poesia luxuriante e emocionante, alimentada pelo encantamento e pelo medo que habitam toda criatura humana diante da natureza. No início de toda canção de amor o poeta celebra a chegada da primavera. Mas essa natureza, essa natureza das coisas, essa bela natureza, essa natureza poética, como precisar os seus sentidos múltiplos, como confrontá-los com a nossa ideia da natureza e da poesia? Que fio sinuoso liga Boécio aos trovadores e aos poetas monacais? A primavera e o canto dos pássaros que encantam os poetas medievais são os mesmos que encantam os poetas românticos? Colocando a si mesmo tais questões e tentando respondê-las na sua obra Nature et poésie au Moyen Âge, Michel Zink (2006) chega à conclusão de que a concepção de natureza na Idade Média é bastante diferente da que se tem hoje, e não pode ser analisada senão com um olhar sobre aquele período.

No seu artigo intitulado “Nature et sentiment”, Michel Zink (2003) explicita que, embora a poesia épica e também a poesia trovadoresca abordem a “natureza” nos seus versos, isso não passa de um recurso para enquadramento da cena que o poeta quer relatar, isto é, a natureza não serve senão como um pano de fundo da poesia. O filólogo francês confirma que não existe na Idade Média uma poética da Natureingang propriamente dita (Zink, 2003: 39). Isso se deve, provavelmente, ao fato de que a matéria sobre a natureza está profundamente enraizada e associada à visão teocêntrica, a saber, à ligação do homem medieval com a Sagrada Escritura: a “natureza” é Deus, o Criador de todas as coisas. O “sentimento da natureza” na Idade Média, lembra Zink, percebe-se nas estrofes primaverais, nas pastorelas, nas reverdies, em vários romances corteses e em várias canções de gesta, no Roman de la Rose, assim como na celebração do locus amoenu. A corrente literária que se prende a tais gêneros é persuasiva de que há um elemento maior da poesia e da sensibilidade medievais em relação à percepção da natureza, todavia, o conhecimento do mundo, naquela época, está fortemente ligado à interpretação da Escritura (Zink, 2003: 39). Reitera isso Pierre Bühler, que chama atenção para a polissemia da palavra Natureza no medievo – o que já fora observado antes por Alain de Lille, que encontrou pelo menos onze sentidos diferentes na sua obra Distinctiones dictionum theologicarum, (PL, 210, 841) – e reafirma que o universo mental da Idade Média “entende o mundo como interpretação da Sagrada Escritura” (apud Zink, 2003: 39). Michel Zink conclui que a noção de natureza naquele período reenvia fundamentalmente à ação criadora de Deus, baseado nas concepções de Boécio, de que “Deus é Natura, pois Ele é a causa eficiente de todas as coisas”, e também de Santo Agostinho, para quem “Deus é Natura, mas não criada e sim criadora” (Zink, 2003: 40).

Os Milagros de Nuestra Señora, de Gonzalo de Berceo, apresentam algumas características essenciais, relacionadas com cada uma das narrativas, mas em todas elas é realçado o protagonismo de Maria. No Prólogo dos Milagros, que será objeto deste estudo, além de apresentar Maria com todas as características inerentes à Mãe do Criador, Ela é associada à Natureza, ou melhor, Ela está inserida num Jardim que, se pode dizer, do Éden, e Maria como metáfora da Nova Eva, a que veio para reabilitar a humanidade do pecado da primeira mulher.

Para um estudo do jardim na Idade Média é preciso antes de tudo compreender esse espaço simbólico e esse topos tão caro aos poetas. Com efeito, a literatura de todas as épocas utilizou largamente o jardim, a floresta, o bosque ou a simples natureza circundada por plantas, árvores e flores, assim como o canto dos pássaros ou a presença dos animais, os quais remetem ao locus amoenus, um dos topoi da retórica clássica. O vocábulo “jardim” implica, por sua vez, conotações variadas, tanto na Idade Média, quanto atualmente. Régine Pernoud (1996) assinalou uma diferença, no medievo, entre um hortuspomar’, local em que se cultivavam as plantas condimentares e um herbularius, onde eram cultivadas as plantas medicinais. O topos do jardim medieval será abordado mais adiante.

Relacionar a figura de Maria com o locus amoenus é um dos objetivos deste estudo. O locus amoenus ‘lugar agradável, lugar aprazível’, do qual Ernest Robert Curtius (1956) mostrou muito bem a importância, nos domínios latino e médio-latino, é também um lugar-chave da poética medieval em língua vulgar, e será cenário de algumas narrativas de milagres registradas nessa época.

Nesta análise, tentarei ressaltar alguns aspectos estilísticos e semânticos do Prólogo dos Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo, o qual, no meu entender, pode ser considerado uma matéria de estudo coerente e autônoma, tendo em vista que descreve uma viagem espiritual ao Paraíso, tratando-se, na realidade, do topos do homo viator, muito em voga na época das grandes peregrinações a Jerusalém, a Roma e a Santiago de Compostela, nos dois primeiros séculos da Baixa Idade Média. Como lembra bem Olivier Biaggini, “esse motivo permite uma aproximação da arte poética do mester em que o ‘curso rimado’ aparece como uma viagem orientada para uma direção espiritual” (Biaggini, 2007: 25).

Observemos, antes de analisar o poema, o lugar de Maria, desde os primeiros séculos do cristianismo, e o seu protagonismo nos séculos XII e XIII, período de apogeu dos estudos marianos. Há um consenso entre os estudiosos dos estudos marianos de que os evangelistas não são muito precisos e tecem poucos comentários sobre Maria, quando falam da Natividade ou da Infância de Jesus. Durante os dois primeiros séculos do cristianismo serão os teólogos da antiguidade tardia – principalmente Inácio de Antioquia, São Justino e Santo Irineu – os mais importantes precursores dos estudos mariológicos.

O testemunho de Justino é particularmente importante, pois ele escreve em meados do século II, tendo sido considerado o maior apologista do cristianismo. Nascido na Cisjordânia, na antiga cidade de Sichem (ou Naplouse) filho de pais pagãos, abraçou a fé cristã na idade adulta, quando se sentiu “tocado” pelo Cristo; e a partir de então empregou seus dons para propagar a fé cristã em Roma. Embora de origem pagã, Justino conhecia muito bem a tradição judaica, em razão das discussões que teve com rabinos sobre o passado de Israel. Na cidade romana abriu uma escola e viveu durante muito tempo, onde acabou sendo martirizado por volta de 165. Justino foi o primeiro a nomear Maria “a Virgem”, e a formular o binômio “Eva-Maria”, na sua obra Diálogo com Trifão. (Archambault, 1909; chp. C. 2,5), situando Maria na história da salvação. Nessa longa história, o pecado de Eva impediu o projeto criador, e foi Maria quem liberou o caminho, ao ser apresentada ao mundo como a Virgem Mãe do Filho de Deus, anunciada diversas vezes pelos profetas, tornando-se Ela, portanto, a livre colaboradora do plano da salvação.

Ainda nesse mesmo século, Santo Irineu – nascido em Smyrna, na Grécia, e tendo se tornado bispo de Lyon entre 173 e 178 – esboçou a teoria sobre Maria nomeando-a “Mãe da Igreja” e considerou-a como uma Nova Eva, que veio para redimir a humanidade dos pecados cometidos pela primeira mulher. Nessa perspectiva, Eva-Maria é uma tipologia proposta por Justino, aperfeiçoada por Irineu, no seu Tratado contra as heresias (Adversus Haereses). Irineu escreveu essa obra contra Valentino do Egito e os gnósticos, na qual ele menciona, entre outros, o Evangelho de Judas (Rousseau-Douteleau, 1974; III, 22, 4). Dessa forma, a tipologia Eva-Maria contribuiu para o desenvolvimento do “culto da invocação”, colocando em evidência o impacto social e os efeitos universais de adesão da Virgem ao projeto salvador de Deus.

Segundo Irineu, o topos “Terra virgem”, que significa na terra “virgem” do Paraíso, ainda não irrigada pela chuva, nem trabalhada pela mão do homem (cf. Gen. 2,5), da qual Adão foi tirado, representa uma imagem do seio virginal de Maria, em quem, sem intervenção de um homem, o corpo do Cristo foi modelado pela operação do Espírito Santo. Esse símbolo mostra Maria profundamente envolvida no mistério cósmico de Deus e provoca a veneração e o respeito sagrado do seu ponto de vista (Rousseau-Douteleau, 1974; III, 21, 9-10).

Em relação à Virgindade, é necessário distinguir a “Imaculada Conceição” da “concepção virginal”: a primeira se refere ao fato de ter sido Maria concebida sem pecado e a segunda consiste no fato de que Maria tenha concebido Jesus do Espírito Santo, guardando a sua virgindade. Se, no plano filosófico, para um ateu ou um agnóstico, uma concepção virginal torna-se impossível, a questão é outra para aqueles que crêem na existência de Deus, pois se pode admitir-se a existência objetiva de um Deus criador, em nome de que princípio ter-se-ia o direito de recusar-Lhe a possibilidade de fazer uma virgem conceber? Se, por outro lado, a história da concepção virginal não passasse de um mito ou de uma lenda, não seria o caso de se dizer o mesmo da Encarnação, da Redenção do mundo pela Paixão e Morte de Cristo, da Ressurreição e da Parousia (grego ‘Parusia’), isto é, do retorno glorioso de Cristo no fim dos tempos?

Nos séculos II e III, Orígenes (185-254), teólogo da escola de Alexandria, utilizou a expressão Theotokos (Dei Genitrix), ou seja, a «Mãe de Deus», para se referir à Virgem Maria, termo que foi incorporado à liturgia oriental, desde a primeira metade do século III.

O que se pode observar, a partir dos escritos desses eruditos, é que as questões relacionadas com Maria, na antiguidade tardia, são mais de caráter dogmático do que de veneração e culto. Entretanto, com São Jerônimo e Santo Agostinho (séculos IV e V) a mariologia se enriqueceu conceitualmente. Um exemplo disso é o culto de Nossa Senhora da Consolação e Correia, num relato que serviu para divulgar as idéias de Santo Agostinho, sobre a figura de Maria e de sua Assunção. Quando Maria faleceu, o apóstolo Tomé encontrava-se ausente, talvez, em missão na Índia. Retornando de viagem e constatando que o túmulo onde Maria havia sido sepultada estava vazio, o apóstolo precisava de uma prova para crer que Ela havia falecido. Em razão disso, na Sua subida ao Céu, Maria lhe atirou uma cinta, a mesma que era usada pelas virgens de Israel. Mais tarde, essa história foi contada e utilizada por Santa Mônica ao tentar converter seu filho Agostinho de Hipona ao Cristianismo. Desde então, os agostinianos passaram a divulgar esse relato. São eles, pois, os grandes divulgadores do culto de Nossa Senhora da Consolação e Correia, a partir do Renascimento, por toda a Europa e posteriormente para a América.

Na realidade, os autores da antiguidade tardia, da Alta e da Baixa Idade Média, criaram teorias sobre Maria, interpretaram o silêncio dos Evangelhos e alguns dogmas atribuídos a Ela, propuseram uma tipologia, mas não criaram uma poética mariana. Pode-se dizer que foram os monges, os quais compuseram a sua obra principalmente em língua vernácula, os fundadores dessa poética: Le Gracial de Adgar, Gautier de Coinci, Gonzalo de Berceo, para citar os principais, e também o rei trovador Alfonso X.

A narrativa de milagres da Virgem Maria constitui um dos gêneros mais difundidos da literatura medieval de toda a Europa e se relaciona, muitas vezes, com os santuários a Ela dedicados, como é o caso de Chartres e de Rocamador, na França. A expansão do culto de Nossa Senhora de Rocamador está comprovada na coletânea de milagres difundidos no século XII, em prosa latina, que apresenta alguns fatos miraculosos relacionados com o Santuário. Em 1172, um monge desconhecido redigiu a coletânea dos milagres de Rocamador, a partir das notas de um tabelião, especialmente encarregado de receber os depoimentos dos fiéis, que foram protagonistas ou testemunhas de algum milagre de Nossa Senhora. Tais narrativas podem ter lugar entre 1172, data da composição do livro, e 1166, data da descoberta do corpo de Santo Amador. O autor anônimo ali escreveu que pretendia contar somente as maravilhas que ele mesmo testemunhara, ou foram testemunhadas por outras pessoas, as quais ele tinha como absolutamente certas, e que remontavam até o ano de 1140 (Albe et Rocacher, 1975).

A origem do manuscrito do Livre de Miracles de Rocamadour remonta à época do abade Géraud d’Escorailles. O livro contém 126 narrativas de milagres obtidos pela intercessão de Nossa Senhora de Rocamador, a maior parte deles relatando curas instantâneas dos fiéis, ou que aconteceram depois de eles terem realizado a peregrinação. Deve-se à difusão do livro de milagres a consolidação e o prestígio do Santuário de Rocamador, por toda a Europa. Os personagens e os acontecimentos históricos, registrados naquele livro, permitem, algumas vezes, datar os milagres a partir de 1148. Tais milagres possuem assim um duplo caráter: factual e ficcional.

Desde a época de Gregório de Tours (século VI), os relatos de milagres em língua latina começaram a se tornar mais freqüentes, tratam-se porém de milagres atribuídos aos santos, os quais foram logo objeto de devoção, por causa das histórias de seus martírios e dos seus restos mortais, bem como de suas relíquias cultivadas e guardadas em santuários de renome. Na Europa, entretanto, o culto mariano começou mais tarde do que o dos santos, mesmo se Maria fora objeto de estudo desde o século II. Uma das razões disso é a Sua Assunção. Como Ela subira ao Céu, não havia um corpo para servir de relíquia; o culto à Mãe de Deus se propagaria, pois, de outra forma.

Malgrado isso, o culto mariano na Europa remonta a um tempo mais antigo, bem antes da sua eclosão nos séculos XII e XIII, como o atestam a Capela de Maria “Estrela do Mar”, de Maastricht, do século IV, na Holanda, e os santuários de Puy-en-Velay e de Chartres, na França, ambos datados do século V, os quais foram consagrados à Mãe de Deus. No fim do século XI, afloram, no espaço europeu, os santuários dedicados à Virgem Maria. Com isso crescem simultaneamente as manifestações de devoção e invocação a Nossa Senhora, principalmente no espaço românico (mas não exclusivamente, é claro), em que o nome da Virgem aparece em destaque com seus respectivos epítetos: Nuestra Señora del Pilar, de Saragossa; Santa Maria Maggiore, de Roma; Notre Dame de Paris; Notre Dame de Chartres; Notre Dame de Rocamadour; a Virgen de Montserrat; para citarmos apenas as catedrais e os santuários mais famosos, não somente pela sua beleza artística, mas, pelo fato de serem também cenários de milagres marianos. A dama da corte, a “senhora” do castelo, que protegia os poetas na época do trovadorismo, seria substituída, na poesia, por aquela que era a “Senhor das Senhoras”, daí o outro epíteto de Maria: “Nossa Senhora”.

Efetivamente, nos séculos XII e XIII desenvolve-se no espaço da România uma poesia de caráter religioso, que tem a sua gênese nas cortes trovadorescas e, algumas vezes, nos mosteiros. Os temas mais constantes dessa poesia são o louvor à Virgem Maria, a quem são dirigidos expressivos elogios, e as narrativas de milagres, nos quais Ela é a mediadora entre Deus e os homens. Dos milagres conservados nos mosteiros, em latim, muitos serão traduzidos para as línguas românicas, de forma estilizada, transformando-se em primorosas peças literárias. Os poetas marianos remanejam formas novas, recorrem a uma nova métrica, acrescentam temas novos e coetâneos, criam um estilo novo, pode-se falar já numa “marca de autor”. Nesse contexto, apresentam-se os grandes cantores de Maria: Gautier de Coinci (Norte da França) e Gonzalo de Berceo (Norte da Espanha), monges que ajudam a propagar os milagres marianos através de suas recolhas, respectivamente: Miracles de Nostre Dame e Milagros de Nuestra Señora.

O culto de Maria atinge o seu apogeu, na Europa, no século XII e continua incandescente no século XIII. Esses dois séculos que coincidem com o trovadorismo, enquanto fenômeno pan-românico, coloca Maria no cerne da questão do amor cortês: compara-se a imagem do cristão prosternado aos pés da Virgem com a imagem do trovador suplicando à dama da corte o seu amor. A coincidência entre o amor da Mãe de Deus e o da dama da corte condiciona as crenças e as manifestações interiorizadas do povo. A analogia entre Maria e a dama cortês será um topos bastante explorado pelos trovadores. O próprio Afonso X se apresentará como trovador da Virgem, no Prólogo das Cantigas de Santa Maria. O Rei Sábio, que conta no seu scriptorium com uma equipe multicultural e polivalente, manda compilar e dar forma poética a muitos daqueles milagres relatados por seus antecessores, apresentando alguns motivos coincidentes com outros relatos românicos, porém, com um estilo inteiramente diferente. Surge, assim, o mais belo e o mais completo Cancioneiro Mariano da Idade Média, que o rei de Leão e Castela, o grande arquiteto das Cantigas de Santa Maria, fez registrar em galego-português.

Entretanto, a primeira recolha de milagres marianos em língua vernácula nos vem da Inglaterra: o Gracial de Adgar, composto em língua anglo-normanda. Trata-se de uma recolha de 49 Milagres da Virgem, em versos octossílabos, do qual o suposto autor apresenta duas versões: uma de 1165-1170, dedicada a um amigo chamado Gregório, e a segunda, de 1175-1195, dedicada a uma filha natural de Henrique II. De Adgar, apenas se sabe que foi um clérigo de fins do século XII, possivelmente algum vigário da Igreja de Santa Maria Madalena, entre 1162-1200, em Bread Street, ou que talvez tenha vivido na Catedral de Saint Paul, em Londres, sem ser cônego. A fonte do Gracial foi um volume conservado na Catedral de Saint Paul, que teria sido escrito em 1160, por mestre Alberic, compilador de uma recolha de milagres de Guilherme de Malmesbury, Anselmo de Bury e Dominique d’Evesham. Muitos dos milagres do Gracial se passam na Inglaterra, outros na França, precisamente em Chartres (Labie-Leurquin, in: Dictionnaire des Lettres Françaises – Moyen Âge). O Gracial é a mais antiga tradução ou recriação dos milagres da Virgem em língua vernácula.

A riqueza de detalhes dos textos relacionados com o culto de Maria apresenta uma dimensão do imaginário medieval, além de fornecer inúmeros topoi da literatura bíblica, refundida e remanejada pelo lirismo do medievo. As coletâneas dos milagres de Nossa Senhora refletem um duplo interesse: a visão de uma sociedade da qual os fundamentos se fissuram, e o homem ocupado com o mundo e consigo mesmo.

A descrição que faz Gonzalo de Berceo no Prólogo dos Milagros de Nuestra Señora, conjunto de poemas que narram os milagres da Virgem Maria, retrata a imagem de um jardim magnífico, o qual se apresenta numa escritura bela e singular, devido não apenas ao talento do poeta, mas também à sua erudição no âmbito da literatura sagrada, malgrado a sua modéstia ao se apresentar: “Gonzalo fue su nombre, quien hizo este tratado, / en San Millan de Suso fue de niñez criado, / natural de Berceo, ond’san Millan fue nado”. Acredita-se que Berceo tenha sido um clérigo secular, pois nos seus textos aparece o qualificativo preboste, diante de sua assinatura. Nascido na região de La Rioja, na Espanha, ele fazia parte, como monge, de San Millán de Suso. Se, por um lado, a vida de Berceo é quase desconhecida, não se pode dizer o mesmo de sua obra. Como ele era especialista no verso alexandrino, por muito tempo acreditou-se que ele fosse o autor do Libro d’Alexandre, hipótese hoje descartada. Berceo deixou um patrimônio literário bastante significativo, em particular sobre hagiografia. Escreveu sobre a vida de Santo Domingo, San Millán, Santa Oria e as obras marianas: Milagros de Nuestra Señora, Duelo de la Virgen ...

O Prólogo dos Milagros de Nuestra Señora compõe-se de 34 estrofes (cuadernas vías), ou seja, quatro versos alexandrinos monorrimos, com rima perfeita: AAAA, BBBB, CCCC, etc., narrado na primeira pessoa. O Prólogo inicia-se com uma exortação feita pelo poeta a todos aqueles que servem a Deus, com o intuito de escutarem a narração dos milagres que ele vai relatar.

Olivier Biaggini lembra bem que as três cuadernas iniciais do Prólogo oferecem a mais completa e sem dúvida “a mais bela expressão do lugar comum do homo viator” (Biaggini, 2006: 26).

Amigos e vasallos de Dios omnipotent,

si vos me escuch ásedes por vuestro consiment,

querríavos contar un buen aveniment:

terrédeslo en cabo por bueno verament. (c. 1)

Em continuação o poeta se apresenta como o “Maestro Gonzalo de Berceo nomnado”, o qual chegou a um prado verde e ondulado, cheio de flores, um lugar aprazível, lugar ideal para um peregrino cansado (Uría, c.2):

Yo Maestro Gonzalo de Berceo nomnado,

yendo en romer ía caecí en un prado

verde e bien sencido, de flores bien poblado,

lugar codiciadero para ome cansado.

As estrofes seguintes, isto é, as “coplas” (c.) em cuaderna vía, apresentam imagens de um jardim paradisíaco: um prado para deleite, no qual as flores acalmam a vista e o espírito (c.3). Nesse locus amoenus encontram-se árvores frutíferas tais como: figueiras, pereiras, macieiras, etc., e também, não existem frutos estragados ou amargos (c.4). O prado verde, o olor das flores, as sombras das árvores de outros tempos, acalmam os suores (c.5). O poeta-narrador, livre das suas roupas, colocou-se confortavelmente à sombra de uma bela árvore (c.6), esquecendo-se de tudo (perdí todos cuidados), escutando o som, ou a voz modulada e harmoniosa dos pássaros (c.7, c. 8). O concerto dos pássaros não pode ser comparado a nenhum instrumento: não existe nenhum tocador de órgão, ou de viela, ou de saltério, nem voz ou língua que possuam tal harmonia. O jardim permanecia sempre verde: non perdie la verdura por nula tempestat (c.10). Os homens e os pássaros podiam aí colher as flores; todavia, quanto mais eles colhiam, mais numerosas elas se tornavam: por una que levaban tres e quatro nacien (c.13). O fruto das árvores era tão doce, que se Adão e sua mulher o tivessem comido, eles não teriam sido condenados (c.14).

Trata-se obviamente de um jardim alegórico, que Berceo, nas suas cuadernas vias de 1 a 14, explicará em seguida, dizendo que as palavras são obscuras, portanto irá expô-las sem rodeios: tolgamos la corteza, al meollo entremos, / prendamos lo di dentro, lo de fuera dejemos (c.15, v. 3-4). Neste momento o poeta passa a explicar as alegorias do jardim: somos todos peregrinos (c.16), estamos na Terra, como passageiros, em busca do Paraíso, e terminaremos essa peregrinação, quando nós [que servimos à Virgem], enviarmos nossas almas ao Paraíso: la nostra romería estonz la acabamos / cuando a paraíso las almas enviamos (c.17, v. 3-4).

O topos do homo viator, muito frequente na literatura de ascese, apresenta o peregrino que se encontra em vias de um progresso espiritual, o qual lhe permitirá ascender ao reino celestial, assegurado, antes de tudo, pela proteção da Mãe de Deus. Cabe, pois, ao “bom peregrino”, entre outras coisas, louvá-la, ressaltando as suas virtudes.

Como observou bem Jacques Le Goff, não existe um lugar de encontro mais importante entre o homem biológico e o homem social do que o espaço. E esse espaço é um objeto eminentemente cultural, variável ao gosto das sociedades, das culturas e das épocas, espaço orientado, impregnado de ideologia e de valores. (Le Goff, 1985: 62). Ressalte-se que o espaço é também simbólico, e que o jardim na Idade Média, simboliza entre outros o Paraíso.

Chueca-Goitia, comentando a arquitetura medieval, ressalta que o espaço que não é fechado não é um jardim, e sim uma paisagem, um bosque – quase sempre sagrado – ou simplesmente um espaço agrícola. “O homem começa a construção de seu jardim – em restituição à natureza desgastada – no interior de sua casa, na corte, no peristilo ou no claustro”. Num espaço exterior, não se pode, em principio, falar de jardim, porque trata-se do reino da natureza virgem, e não há, portanto, necessidade de restituí-la (Chueca-Goitia, 1973: 27). O jardim é também um lugar de prazer e faz parte do locus amoenus, do qual Curtius mostrou a importância nos domínios da literatura latina e médio-latina.

O espaço descrito por Berceo é o da natureza virgem, na verdade o hortus deliciarum, no qual ele introduz a sua protagonista, a Nova Eva, a qual veio ao mundo para redimir, junto ao seu filho, os pecados da primeira mulher. O “bom prado” pode ser comparado à “Virgem gloriosa, mãe do Bem Criado, do qual não se encontra outro igual... Esse jardim sempre foi verde post partum et in partu” (c.18, c.19, v.3). A verdura perene do jardim pode ser associada à maternidade de Maria, antes e depois do parto, a partir do qual Ela continuou virgem, pelo fato de ter dado à luz o filho de Deus, conforme foi comentado acima. As árvores que compõem o jardim poderiam ser descodificadas como os milagres de Maria, que se proliferaram no imaginário medieval, e a sombra das árvores seriam as orações dos pecadores “que rezam noite e dia a Santa Maria” (c.20). Observem-se as cuadernas nas suas formas integrais:

En esta romería habemos un buen prado,

en qui trova reparo tot romeo cansado,

la Virgen glorïosa, Madre del buen crïado,

del cual otro ninguno egual non fue trovado.

 

Esti prado fue siempre verde en honestat,

ca nuncua hobo mácula la su virginidat,

post partum et in partu fue virgen de verdat,

ilesa, incorrupta en su integridat.

 

La sombra de los árbores buena dulz e sanía,

en qui habe reparo toda la romer ía,

s í son las oraciones que fas Sancta María,

que por los pecadores ruega noche e d ía.

(Ur ía, 1992, c. 18-20)

Chueca-Goitia assinala também que na literatura da Idade Média a representação do jardim é eclética, e confirma de um lado sua origem nas fontes religiosas, sobretudo na Biblia, e até mesmo no Corão e na Tora, e por outro lado, nas fontes históricas, como na Anabase, em que Xenofonte descreve o jardim construído por Ciro, como um imenso pomar, cheio de frutos (Chueca-Goitia, 1973: 28). Esses jardins antigos, bíblicos ou não, servirão de modelo não apenas para a arquitetura, mas também para a literatura, o que confirma, em parte, a hipótese de Michel Zink de que o modelo da natureza na Idade Média é “importado” de outros modelos pré-existentes.

Outro topos interessante do Prólogo é o canto dos pássaros, relatado na cuaderna 9, o qual pode ser atribuído aos santos que “cantaram” sobre Maria: Santo Agostinho, São Gregório, mencionados na cuaderna 23, e alguns outros autores da Alta e da Baixa Idade Média. Como bem afirmam metaforicamente Chevalier e Gheerbrant: “o canto é o símbolo da palavra que une o poderoso criador à sua criação (...), é o sopro da criatura respondendo ao sopro criador” (Chevalier et Gheerbrant, 1985).

Efetivamente, desde os primeiros séculos do cristianismo, os Pais da Igreja, os Doutores e os teólogos foram – além dos dogmas que estabeleceram– pioneiros dos louvores a Nossa Senhora. Santo Ambrósio de Milão (século IV), considerado o pai da mariologia ocidental, fez a seguinte afirmação sobre Maria: “Ela é o Templo de Deus e não o Deus do Templo”. Alguns séculos depois, São João Damasceno, considerado o grande “cantor” da veneração mariana no Oriente (séculos VII-VIII), disse: "Não é Maria que precisa de elogios, nós é que precisamos de sua glória". Pouco a pouco, a veneração popular e a reflexão dos intelectuais engrandeceram a imagem de Maria e a associaram aos grandes milagres. Até o começo da Idade Média, os grandes pregadores da Igreja escreveram também sobre Maria: o já citado, Santo Agostinho, Venâncio Fortunato (530-609), Santo André de Creta (660-740), e São João Damasceno (676-749), entre outros, muito antes do florescimento mariano nos séculos XII e XIII. Através de Santo Agostinho (354-430), a mariologia latina se enriqueceu sistematicamente: ele estabeleceu a perpétua virgindade de Maria, a sua Assunção ao céu, e uma ligação com a Igreja, colocando Maria sob o poder dessa última, sendo Ela parte da Igreja, pois todo o corpo possui mais categoria do que um só membro (Graef, 1968).

Alguns séculos mais tarde, entre a Idade Média e a Reforma, grandes teólogos marianos se levantaram: São Bernardo de Claraval (1090-1053), São Tomás de Aquino (1225-1274), sem deixar de citar Duns Scott (1266-1308) a quem devemos os textos magníficos sobre a Imaculada Conceição. Nesse mesmo tempo, a poesia mariana apresentou um grande sucesso na cristandade ocidental; todavia, no Oriente, a literatura mariana continuou sendo essencialmente litúrgica.

Retornando ao texto de Berceo, as alegorias do jardim descrito no Prólogo dos Milagros de Nuestra Señora estão centradas na figura da Virgem Maria e suas Litanias: Stella Maris (“La benedicta Virgen es estrella clamada, / estrella de los mares, guiona deseada”, c. 26) ; Regina Coeli, Stella Matutina (“Es clamada y eslo de los cielos reina, / templo de Jesu Cristo, estrella matutina”, c.27); é a fonte na qual todas as criaturas bebem, o porto para o qual nos dirigimos, e a porta que esperamos (“Ella es dicha fuent de qui todos bebemos, ... Ella es dicha puerto a qui todos corremos, / e puerta por la qual entrada atendemos”, c. 28). Essas formas imagéticas de Maria, como “Estrela do Mar”, “Estrela Matutina”, “Rainha dos Céus” serão usadas em quase toda a poesia mariana da Idade Média e atravessarão os séculos, ao serem inseridas nos cantares ou hinos de louvor, talvez pelo fato de sua preservação na Ladainha de Nossa Senhora.

Nos últimos versos do poema, o narrador ou “eu poético” evoca por metonímia os sabores dos grãos e das árvores: uva, almendra, malgranada, oliva, cedro, bálsamo, palmito (c. 29), e ainda apostrofa ao público ao qual se dirige: Señores e amigos ... (c.30, v.1 e c.32, v. 4), ao mesmo tempo em que ele evoca os pássaros canoros, as sombras, as águas e as flores:

Es dicha vid, es uva, almendra, malgranada,

que de granos de gracia está toda calcada,

oliva, cedro, bálsamo, palma bien elevada,

piértega en que se hobo la serpiente alzada.

(Ur ía, 1992, c. 29)

 

Quiero dejar contanto las aves cantadoras,

las sombras e las aguas, las devant dichas flores:

quiero de estos fructales tan plenos de dulzores

fer unos pocos versos, amigos e se ñores.

(Ur ía, 1992, c. 32)

A cuaderna 29 termina com um verso que faz alusão à serpente enrolada na vara: “piértega en que se hobo la serpiente alzada”, o que completa e corrobora a descrição do Paraíso. O Prólogo termina com uma invocação do poeta à Virgem, para ajudá-lo na tarefa de contar os seus milagres, o que não deixa de ser um recurso retórico.

O jardim descrito por Berceo, no Prólogo dos Milagros, não é um hortus conclusus de um mosteiro, trata-se antes de um hortus deliciarum, que tem suas fontes no texto bíblico, e os topoi do Paraíso terrestre são os componentes do cenário. Pode-se pensar em duas representações do jardim medieval: o hortus conclusus, o jardim secreto que a Igreja escolheu como símbolo, e o hortus deliciarum – o jardim paradisíaco, fonte dos prazeres terrestres, que os senhores feudais e os poetas preferiram (Chueca-Goitia, 1973). No começo da Idade Média, os jardins eram de utilidade dos mosteiros, alguns séculos mais tarde, apareceram os jardins particulares, junto aos senhores dos castelos, que podem estar relacionados com as viagens das Cruzadas e as descobertas dos jardins do Oriente (Chueca-Goitia, 1973). A literatura medieval irá explorá-los como cenário, e os poemas de caráter religioso ou piedoso também o utilizarão como um dos topoi do locus amoenus.

Como escreveu Olivier Biaggini, somente o bosque marial pode constituir, segundo a alegoria de Berceo, uma etapa que acolhe o peregrino cansado e lhe permite apagar a alienação da condição humana. O bosque aparece no Prólogo “como o restabelecimento de um paraíso original isento de toda possibilidade de uma nova Queda” (Biaggini, 2007: 27). Por outro lado, Michael Gerli acredita que todo o corpus dos Milagros seria destinado prioritariamente a um público de peregrinos que faziam etapa em San Millán (Gerli e Sharrer, 1992, apud Biaggini, 2007, nota).

Como foi dito anteriormente, concordando com Zink, uma descrição da natureza enquanto topos original não existe nos textos da jovem literatura românica. Não existe uma poética da natureza na literatura românica emergente, e poetas como Gautier de Coinci ou Gonzalo de Berceo versados na literatura antiga greco-romana, além, é claro, do profundo conhecimento do texto bíblico, foram buscar principalmente nesses últimos a sua matéria literária.

Por quê a Idade Média ignora o sentido moderno da palavra “natureza”? Como se unem as duas correntes poéticas – aquela que coloca no centro de suas preocupações a obra criadora da natureza e aquela que faz da natureza o incipit obrigatório do poema? O sentido verdadeiro da natureza encontra-se na participação da natureza tal como a conhece o romantismo e isso não existe na Idade Média. Se, por um lado, a Idade Média impôs bem a associação da natureza e do amor –como nas canções primaverais, nas pastorelas, e nas reverdies, etc–, essa mesma Idade Média ignora o espetáculo da natureza, e não conhece senão uma participação nela. Por mais delicadas, precisas e evocativas que tais peças sejam, elas não descrevem uma paisagem, e sim sugerem um contato com a natureza. O fato é que a Idade Média ignora o sentido moderno da palavra “natureza” e vê na natureza o poder gerador do homem e da criação (Zink, 2003). A palavra “natureza” é um termo da Antiguidade Clássica e pagã. Na latinidade tardia e neo-platônica há uma reflexão e uma poética novas em torno da figura da Natureza ou de sua personificação em Macrobio, Marcianus Capella e Boécio, diferente porém, daquela Natureingang que propunha a poesia latina de Virgilio, Ovídio ou Lucrécio (Zink, 2003). O século XII vê, nas artes iconográficas, a vegetação invadir o cenário; trata-se, na realidade, da retomada de cenários antigos, no momento da reforma gregoriana, ou a representação da árvore de Jessé, explorando o valor da árvore em si mesma (Zink, 2003).

Enfim, resta lembrar que “a estética românica não é uma estética da surpresa, mas sim, uma estética que privilegia a conjuntura e a beleza do estilo. Fazer um verso novo é, principalmente, inventar uma forma nova, e não, inventar uma matéria nova” (Legros, 1992: 18, grifo meu). Nesse sentido, o poeta do mester de clerecia dialoga com o texto bíblico da Criação, para relatar uma peregrinação metafórica, sob a forma da cuaderna via, que será a sua marca estilística em outras narrativas de milagres ou hagiográficas.

Tal como ressaltou Dámaso Alonso, o escritor medieval (fosse ele tradutor, compilador ou criador) não se limitava ao simples remanejamento de topoi antigos, e não obedecia cegamente à retórica clássica, ao contrário, ele apresentava traços estilísticos bastante originais (Alonso, 1964), afirmação na qual se enquadra o Prólogo dos Milagros de Berceo.

 

Bibliografia

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Biaggini, Olivier, 2007. «Todos somos romeos que camino pasamos»: homo viator dans le mester de clerecía. CEHM, 30, 25-54.

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Chueca Goitia, Fernando, 1973. “Breves considérations sur les jardins-vergers de l’Espagne musulmane”, en: Actes du 2ème Colloque International sur la protection et la restauration des jardins historiques. ICOMOS - IFLA - Grenade, Espagne, 29 oct. - 4 nov.

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Graef, Hilda M., 1968. La mariología y el culto mariano a través de la historia, Barcelona: Herder.

Le Goff, Jacques, 1985. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval, Lisboa: Edições 70.

Legros, Huguette, 1992. La Rose et le Lys. Étude Littéraire du Conte de Floire et Blancheflor. Senefiance, 31, Aix-en-Provence: Publications du CUER MA.

Pernoud, Régine, 1996. “Les jardins de monastères au Moyen Âge”, Actes Sud.

Rousseau, Adelin y J. Doutreleau (eds.), 1974. Irénée de Lyon. Contre les hérésies, Livre III, "Sources chrétiennes", Paris: Cerf.

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